domingo, 23 de fevereiro de 2020

Lúcio

Tomás: Até que ela não ligou tanto. Estávamos enterrando o gato e ela parecia mais pensativa do que triste.

Arís: Estranho, ela amava ele muito. Você não perguntou nada depois?

Tomás: Acabei perguntando sim.

Lúcio: O que ela disse?

Tomás: Só que "nada se cria, nada se perde, tudo se transforma".

Arís: A Lei da Conservação da Massa. O que isso tem a ver com o gato, não entendo.

Tomás: Bom, a matéria que formava o bichinho ainda existe, mas não sei se isso ajuda a confortar alguém. Essa parte do "Ciclo Sem Fim" eu nunca entendi.

Lúcio: Acho que ela está vendo essa frase de forma mais espiritual. O Lavoisier não falava disso, mas a frase aponta pra algo além da química.

Arís: O que?

Lúcio: A reencarnação. O corpo do gato já era, mas sua alma sobreviveu após a morte dele e está agora em outro corpo.

Tomás: Pode ser isso, já que ela é metida com espiritismo e tal, vem da família. Eu mesmo não acredito nessas coisas. E você?

Lúcio: Não sou espirita, bando de positivistas cujo conceito de alma é materialista demais, um ectoplasma. Mas acredito na reencarnação e digo que a alma no corpo é como um pássaro enjaulado. A morte abre as portas, mas muitos vão para outra prisão...

Arís: Os espíritos para eles realmente me parecem pouco mais que um tipo de matéria. Eles parecem acreditar que o espirito é algo que dá pra perceber com os sentidos as vezes.

Lúcio: Pior é defenderem um tal aprendizado da alma vivendo aqui. Como se um ser superior eterno pudesse aprender algo vivendo como insignificantes lesmas efêmeras!

Arís: Isso do aprendizado não tem muito lógica pra mim também.

Lúcio: E você também é um materialista como o Tomás?

Arís: Podemos dizer que sou um meio termo entre vocês: acredito na alma mas não acredito que a dos animais resiste a morte ou que alguma alma sai de um corpo para outro.

Lúcio: Por qual motivo você rejeita a reencarnação?

Tomás: O mais importante é: por que acreditar em algo imaterial se a matéria já explica tudo?

Arís: Nem tudo. A racionalidade é inexplicável no materialismo.

Lúcio: Exato. A matéria e a mente tem características bem diferentes.

Tomás: Vocês podem demonstrar isso? Empiricamente não, já que a alma seria imaterial e portanto fora do alcance sensorial, mas filosóficamente?

Lúcio: Mas é claro. Imagine que você acabou de comprar uma calculadora novinha. Você soma quatro mais seis nela e dá dez.

Tomás: Okay.

Lúcio: Qual a função da maquina que ela executa nesse caso?

Tomás: Adição, claro.

Lúcio: E se depois você colocar uma conta cujo resultado seria um trilhão se a operação fosse adição mas aparecer cinco?

Tomás: A calculadora está quebrada então.

Lúcio: E se você resolvesse ter certeza de que ela quebrou e fizesse outras contas, sendo que todas as contas com o resultado menor que um trilhão terminassem com o resultado esperado e as com o resultado de um trilhão pra cima terminassem com cinco?

Tomás: Ai eu teria certeza que ela está quebrada e iria na loja pegar o meu dinheiro.

Lúcio: Imagine então que você chega lá mas o vendedor tenta te enrolar. Ele insiste que a calculadora está funcionando bem e diz então que não vai devolver o dinheiro, pois ele só devolve se o produto estiver quebrado.

Tomás: Mas como ele pode falar isso se ela não consegue fazer adição direito?

Lúcio: O vendedor diz que a calculadora funciona bem pois foi feita para fazer quadição, que ela faz bem, e não adição. Ele insiste que você que pegou o produto que não queria e a culpa não é dele.

Arís: Hahaha. Essa é a melhor versão desse argumento que eu já vi.

Tomás: É engraçado mesmo. Mas o que é "quadição"?

Lúcio: É tipo adição, mas se a soma der um trilhão ou mais então o resultado deve ser cinco. O vendedor diz que você não tem nenhuma forma de provar que a calculadora devia fazer adição e não quadição, então não dá pra saber se ela está quebrada ou se você confundiu as funções.

Tomás: Claro que dá! Basta você ir conferir a embalagem e o manual da calculadora e ver neles adição nas funções.

Lúcio: Agora imagine que você vai lá olhar e descobre que não existe nada disso, essas calculadoras foram feitas informalmente por um único programador, que trabalha na loja, usando equipamento comprado antes e depois programado por ele.

Tomás: E se eu pegar outra calculadora dessas e mostrar que ela faz adição e não quadição?

Lúcio: Então o vendedor insiste que o programador queria que elas fizessem quadição e não adição, portanto a primeira calculadora, a comprada, está boa e essa ai que está quebrada.

Tomás: Esse vendedor só pode estar de sacanagem...

Arís: Hehe. Você ficaria surpreso com a capacidade de alguns de enrolar.

Lúcio: Pior que é verdade...

Tomás: Então eu vou até o programador, já que ele trabalha ai, e pergunto pra ele o que ele queria que ela fizesse.

Lúcio: Ele diz que ela devia adicionar, mas o vendedor defende que durante toda sua vida o que o programador entendia pela palavra "adição" na verdade poderia ser quadição, então ele dizer que a calculadora devia adicionar na verdade significaria que ela devia quadicionar.

Arís: Só melhora, hahaha.

Tomás: Você só pode estar brincando, haha. Como o programador não saberia que estava fazendo quadição sua vida toda?

Lúcio: O vendedor diria que o programador simplesmente aprendeu quando era criança a chamar quadição de adição e não se lembra. Como ele nunca fez uma conta com o resultado de um trilhão, todo seu comportamento até então é compatível com ele estar fazendo quadição e não adição.

Tomás: Sim, seu comportamento é compatível com isso, mas ele fala claramente que colocou adição e não quadição na calculadora, então sabemos que ele não confundia nada.

Lúcio: Ai o vendedor responderia que o programador realmente disse que fez adição, mas o que ele significa pela palavra "adição" é justamente o que estamos discutindo.

Arís: Isso. Se o programador realmente fez quadição a vida toda, então toda vez que ele dizia que faz adição, na verdade ele se referia a quadição. O comportamento e a fala dele não nos ajudam aqui, pois são compatíveis com as duas opções.

Tomás: A fala e o comportamento dele são indeterminados mesmo, mas ele sabe através do pensamento  o que desejava fazer, então esse vendedor é um safado!

Lúcio: Então a única maneira de sabermos se ele pensava em adição ou em quadição é uma análise de seus pensamentos? A análise de tudo que não seja a mente dele não ajuda?

Tomás: Isso! Tirando a mente dele, tudo  é compatível com as duas opções.

Lúcio: Então na mente dele existe uma determinação que não existe no seu comportamento e fala?

Tomás: Sim, esses são indeterminados por não ter nada neles que defina se significam uma coisa ou outra, enquanto seu pensamento não é assim.

Arís: Demorou mas chegou!

Tomás: O que?

Lúcio: Você aceitou o argumento. Vimos que não existe em principio nada no mundo material que nos ajude a definir se a calculadora executa a função que deveria ou não, mas existe no pensamento. O material é indeterminado, pois nada nele o dá determinado significado e não outro, e o pensamento é determinado, então são diferentes.

Tomás: Mas essa diferença não pode ser epistemológica?

Lúcio: Não, pois a diferença é real. Não existe NADA capaz de definir quem está certo nessa briga em nada material, só nos pensamentos do programador. Por isso eles são determinados e a matéria não.

Tomás: Como assim? O pensamento não é material também?

Arís: Você não está visualizando. Pra ajudar: imagine que te mostro um polígono com dez mil lados e um com um milhão de lados mas não digo qual é qual. Você saberia diferenciar os dois?

Tomás: De jeito nenhum. Parecem iguais pros olhos.

Arís: Mas você é capaz de diferenciar os dois conceitualmente?

Tomás: São fáceis de entender sim. O que esse exemplo mostra?

Arís: Esse exemplo mostra o mesmo que o do Lúcio. As suas imagens mentais são praticamente iguais, são indeterminadas. Mas o pensamento diferencia os dois polígonos. São indeterminados na matéria mas determinados na mente.

Tomás: E se alguém defendesse que o pensamento não é determinado?

Arís: Bom, não só esses argumentos refutam essa ideia como tem o fato de que e o pensamento fosse indeterminado até na parte formal a lógica, a matemática e a ciência não funcionariam, o que é imbecil. Sem lógica, por exemplo, nem argumentar seria possível.

Lúcio: Fora que pra negar que temos pensamento determinado você precisaria de um conceito determinado de pensamento determinado para negar que temos ele. Ou seja: essa opinião se refuta.

Tomás:  Entendi. Então o que é sensorial é material?

Arís: Isso. Percepção sensorial ou corpórea de qualquer tipo, memória e imaginação são materiais.

Tomás: E o que é racional é imaterial?

Arís: Isso. Nossas capacidades racionais como adquirir conceitos, fazer julgamentos e associações com eles e os usar para argumentar segundo as regras da lógica são imateriais.

Tomás: E por isso elas são indestrutíveis?

Lúcio: Como vimos aqui, o nosso lado racional não envolve o corpo diretamente. Se não precisa completamente do corpo enquanto esse está vivo, não precisa depois de se separar dele, então a parte racional do corpo sobrevive a morte.

Tomás: Sim, faz sentido. Mas então como um golpe bem dado na cabeça ou um tumor cerebral podem arrasar o pensamento? Ele deveria ser independente.

Lúcio: O corpo não é toda a capacidade racional, mas ela depende dele. A alma enquanto encarnada precisa dos dados do corpo para funcionar, sendo limitada por ele.

Tomás: Então sem o corpo ela não teria essas limitações?

Lúcio: Sim, essas limitações sumiriam sem o corpo. A alma é capaz de receber e guardar informação de uma forma extremamente superior, como as memórias de outras vidas mostram, mas eu diria que o corpo deixa as coisas difíceis.

Arís: Ai eu discordo. Eu diria que a alma é feita para estar unida ao corpo e sem ele estaria num estado bem pior.

Tomás: Você diria que ela sempre precisa do corpo para funcionar bem, então continuaria existindo depois da morte mas bem limitada?

Arís: Sim. Sem os dados corporáis, a mente não teria conteúdo. Sua alma existe depois de morrer, mas provavelmente parece algo como um coma. Vejo a alma após a morte diferente do Lúcio.

Lúcio: Essa diferença entre nós não importa nesse assunto, já que de qualquer forma concordamos que o pensamento não é material mas precisa dele.

Tomás: É difícil de visualizar.

Arís: É como se eu escrevesse uma frase num papel. O significado da frase não vem da matéria, já que essa poderia ter outro significado, mas a mensagem vai ter dificuldade pra ser transmitida se acontecer algo com a tinta ou com o papel.

Lúcio: Além disso, se as letras se desmancharem a mensagem é perdida. O significado não é material mas depende dele. Eu só acho que um exemplo melhor é escrever na areia, já que representa melhor o corpo.

Arís: Verdade. Fica melhor mesmo.

 Tomás: Bom, vocês me convenceram que a alma existe, mas vi que vocês enxergam a alma de formas diferentes e também discordam sobre a reencarnação ser possìvel. Que tal continuar a discussão e ver quem tá certo?

Arís: É claro.

Lúcio: Sim. Arís, como você não acredita numa ideia tão presente na história? Acho que só as principais religiões abraâmicas não aceitam a reencarnação.

Tomás: Bom,  me metendo, me parece que se temos motivos pra acreditar que uma fé que nega a reencarnação é verdadeira, ela só pode ser falsa.

Lúcio: É verdade, mas ai teríamos que ver qual tem melhores motivos para receber confiança. Tem várias religiões e filosofias que defendem a reencarnação.

Arís: Mas acho que vocês concordam que muita gente acreditar em algo impossível não torna esse algo possível, certo?

Tomás: Verdade.

Lúcio: Sim, mas como algo impossível pode ter ocorrido? Vários pesquisadores pelo mundo coletaram inúmeros depoimentos de pessoas com lembranças de vidas passadas e outras coisas assim.

Arís: Uns gatos pingados dizerem que eram Napoleão ou Leônidas não dá muita base pra acreditar nisso.

Lúcio: Tem muito mais do que isso no trabalho dos pesquisadores. Tem memórias, fobias e traços de personalidades que não tem como aparecerem naturalmente e até casos onde marcas de nascença batiam com as prováveis mortes das vidas passadas.

Arís: Como todos os acontecimentos empíricos, devemos procurar nesses caso a melhor explicação usando as pistas igual faz um detetive numa história de mistério. A questão é que as hipóteses são várias, então temos que as comparar.

Lúcio: Quais hipóteses existem além dessa?

Arís: Sei lá. Pode ser o acaso, fraude, aliens, erros de pesquisa, atividade demoníaca, uma conspiração enorme de algum grupo etc.

Lúcio: E alguma hipótese funciona tão bem quanto a reencarnação? Nenhuma dessas me parece forte.

Arís: Pra saber isso, devemos ver se a hipótese da reencarnação sequer é possível. Se ela não for, não deve ser aceita mesmo que não tenha outra hipótese.

Tomás: É verdade. Por isso esses pesquisadores da reencarnação são esnobados pelos acadêmicos. A maioria é materialista, então nem cogita a possibilidade de reencarnação.

Lúcio: Engraçado que eles geralmente admitem que não podem provar a inexistência do imaterial, mas sempre que provas empíricas surgem assumem que o materialismo foi provado para rejeitar elas.

Tomás: Realmente acontece assim. No caso, acho que o Arís acredita que a reencarnação exige um certo tipo de modela da alma que é falso, portanto ela deve ser descartada de cara.

Arís: É isso mesmo. A reencarnação geralmente exige algum monismo ou algum dualismo de substância para funcionar e acho que nenhum deles é a visão correta da realidade.

Tomás: Sei que o monismo é a ideia de que tudo é feito de uma coisa só, como acreditam os materialistas ou os panteístas. Como seria esse dualismo de substância e como ele é diferente do que você considera correto?

Lúcio: Dualismo de substância é a visão metafísica de que somos feitos de corpo e alma, o primeiro material e a segunda imaterial, com as duas coisas sendo substâncias diferentes. É a visão que tenho.

Tomás: Entendo. Então a alma é algo totalmente diferente do corpo?

Lúcio: Isso mesmo, embora ela costume estar presa a matéria esse não é seu estado natural. Essencialmente, você e todo ser vivo não passa de uma alma que fica presa a um corpo por motivos desconhecidos.

Tomás: Então o meu "eu" que vê, sente, pensa e se reconhece como um é só a alma?

Lúcio: Isso. O verdadeiro Tomás é a tua alma e o corpo é um tipo de acessório, como uma roupa.

Tomás: Então essa união pode ser desfeita?

Lúcio: Pode, como reparado por tantos filósofos e místicos pelos tempos. A alma pensa que o corpo faz parte dela, então devemos entender o que somos de verdade e fazer a alma se desprender do físico.

Tomás: Como fazer ela se desprender?

Lúcio: Como reparado pelos grandes pensadores: primeiro precisamos vencer a ignorância de não perceber nossa natureza imaterial e então deixar que a razão lidere e não as sensações e desejos.

Arís: Ao menos concordamos que a boa vida envolve a razão liderar.

Tomás: Então só o conhecimento não é necessário, temos que viver de acordo.

Lúcio: É claro. Mesmo pensadores que não acreditavam na reencarnação como os das religiões abraâmicas percebiam que deixar o prazer e a dor, esses pregos que prendem a alma ao corpo, dominarem só resulta em erro. O homem moderno ter esquecido isso só mostra a nossa decadência.

Tomás: É verdade que quase toda fé rejeita a vida hedonista como inferior, agora seus ascetismos fazem sentido.

Lúcio: Agir com coerência é o mínimo. Agir como hedonista é um materialismo prático.

Arís: Exato.

Lúcio: Ficar perdido em prazeres e dores é pedir para a alma esquecer o que ela é e se confundir com o que é material e efêmero, inferior a ela. Devemos fazer como os antigos e controlar essas coisas corporais.

Arís: Você disse antes que a alma vai pra outra prisão geralmente. Quer dizer que a vida de prazeres faz a alma voltar a se encarnar?

Lúcio: Sim. A alma que não se purificou do apego ao material insiste em voltar a ficar presa em um corpo. Ignorante do que é, ela volta.

Tomás: A maioria dos que acreditam em reencarnação acreditam que existem graus nessa purificação que alteram a próxima vida. Também acredita nisso?

Lúcio: Sim. Quanto mais perdida no material, a alma volta para viver vidas cada vez mais hedonistas até o ponto de fazerem de tudo para terem prazer, inclusive o errado.

Tomás: Sim, então as mais apegadas ao corpo acabam vivendo vidas como pessoas piores?

Lúcio: É, acabam vivendo como pessoas mais irracionais e portanto inferiores até largarem a razão e se incarnarem como animais irracionais. Acredito que essa é a origem da ideia de Karma.

Tomás: Sua visão meio filosófica e meio mística-religiosa é muito bonita. Tô quase convencido, haha.

Arís: É sexy mesmo, hahaha.

Lúcio: Hahaha. Mas o que importa é a verdade. Arís, qual é a sua visão e como ela é diferente do dualismo de substância?

Arís: Bom, não deve ser tão legal perto da sua, mas vamos começar: não são todas as coisas materiais feitas de identicas partículas?

Tomás: Sim, apesar de serem claramente diferentes são das mesmas partículas.

Arís: Ou seja, elas são iguais no material, mas são diferentes. Como isso é possível?

Tomás: Existem duas explicações materialistas. A eliminativista, que vem lá do Leucipo e do Demócrito, assume que só existem átomos em movimento e que o mundo que vemos é uma ilusão.

Lúcio: O que é uma ideia totalmente retardada, já que não só ela nega toda nossa experiência, a base de toda teoria, sem motivo como ela significaria que átomos, já que são tudo que existe, estão tendo ilusões. E, olha, quem defende isso só merece risos.

Arís: O Demócrito mesmo reparou parte do problema, como vemos num fragmento dos escritos dele. Toda teoria tem como base a nossa experiência, então uma teoria que nega ela se refuta sozinha, pois nega justamente os dados que tenta explicar.

Tomás: Isso é verdade, é uma teoria pouco popular mesmo. A teoria emergentista vê que os objetos do mundo tem características que os átomos não tem, como a água que é molhada ou o animal que tem sensações, então defendem que essas propriedades "emergem" das combinações.

Arís: Sim, os objetos tem características que os átomos sozinhos não tem. O todo é mais do que a soma das partes. Acho que essa ideia é a chave para entender o que vejo como certo.

Tomás: Como assim?

Arís: Um conceito interessante é isomeria. Não temos ai moléculas com os mesmos átomos mas um arranjo diferente?

Tomás: Exatamente. Os isômeros tem átomos iguais mas diferentes arranjos, o que garante características diferentes.

 Arís: Então tem algo como ser o composto X e algo como ser o composto Y e a diferença é algo que define a matéria como determinado composto?

Tomás: Sim.

Arís: A ciência olha as coisas pela causa material, do que algo é feito, e a eficiente, como algo surgiu. Mas esses conceitos que vemos não nos revela algo como a causa formal, ou o que faz algo ser o que é?

Tomás: Como um tipo de essência que organiza os átomos de forma a serem uma substância como ouro ou água? A ciência não fala disso.

Arís: Você entendeu! A ciência realmente não fala disso pois só de preocupa com o que pode ser calculado, mas isso não quer dizer que o que ela não vê não existe.

Tomás: Sei disso. A ciência só de preocupa com as causas materiais e eficientes das coisas mesmo, mas a ideia de uma causa formal me parece intuitiva sim, já que é o único jeito de explicar realmente como átomos podem ter características tão diferentes. Fora que me parece obvio que todo pedaço de ouro tem a mesma essência.

Arís: Isso. As coisas materiais são compostas então de matéria, ou hyle pros gregos, e forma, ou morphe. Essa é a visão hilemorfista. A matéria tem potencial de assumir a forma de qualquer coisa material, sendo por si só indefinida.

Tomás: Mas a forma então define a matéria como composto X ou Y, certo?

Arís: Você entendeu!

Tomás: Então as formas são tudo que definem a matéria?

Arís: Por ai. Você tem as formas substânciais, que fazem a matéria ser uma certa substância ou ter certa essência como ouro ou coelho. O que é particularizado e define é a forma, o que particulariza e é definido é a matéria.

Tomás: Existe algum tipo de forma além da substâncial?

Arís: De certa forma, já que tem características que fazem parte do objeto sem serem essênciais, seriam as formas acidentais.

Tomás: Como assim?

Arís: Um exemplo: determinado pedaço de matéria tem a forma substancial do aço, que o define como tal. Mas esse pedaço pode ser moldado como circulo ou quadrado ou outra forma sem deixar de ser aço.

Tomás: A essência é a forma do aço e essas características como formato ou cor meio que dependem da forma então? Como se a forma substancial fosse o princípio?

Arís: Por ai. A forma substancial define o objeto e as acidentais dependem dela.

Tomás: Acho que entendi.

Arís: Ótimo.

Tomás: Onde entra então a alma nisso?

Arís: A alma é simplesmente a forma de um ser vivo, definindo a matéria como algo vivo. Eu discordo do Lúcio aqui principalmente pois não acho que todo ser vivo tem o mesmo tipo de alma ou forma.

Lúcio: Você acha que as plantas e os animais irracionais tem almas diferentes das nossas?

Arís: Eu diria que temos três níveis de ser vivo. O mais baixo é o dos que crescem, se nutrem e se reproduzem, como as plantas. O mediano também se move e tem sensações, como os animais. O mais alto tem também racionalidade, como nós. O mais alto tem as características do mais baixo e mais.

Tomás: Sim. Então a alma é um tipo de forma e essa se divide em três tipos.

Arís: É a minha visão. O nosso corpo não é uma prisão, mas faz parte de nós, é natural. A alma separada depois da morte não é libertada, mas fica incompleta como alguém que perde uma mão.

Tomás: Nesse caso, a alma dos animais é diferente da nossa e, como vimos antes, a nossa alma é imaterial por realizar funções intelectuais que a deles não realiza. Então a alma dos animais irracionais não é imortal?

Arís: É isso mesmo. A alma dos animais não realiza qualquer função que não seja material, então após a morte a matéria do corpo do animal toma uma forma diferente e a alma dele deixa de existir. A do homem, como vimos, tem funções imateriais, então essas continuam existindo depois da morte.

Tomás: Podemos então chamar essa visão de dualismo hilemórfico?

Arís: Acho um nome interessante.

Lúcio: De que forma a reencarnação é incompatível com o hilemorfismo?

Arís: Imagine que eu vou e fabrico uma bola. Tem a matéria que recebe a forma da circularidade e assim temos um objeto redondo, não?

Lúcio: Sim.

Arís: Faz qualquer sentido no mundo dizer que eu posso fabricar uma bola e a circularidade de outro objeto ir pra ela?

Lúcio: Não faz, hehe.  Como a alma é uma forma apenas, vejo que a reencarnação não tem lugar no hileformismo.

Arìs: Isso. Como eu acredito no hilemorfismo, eu diria que a reencarnação é simplesmente impossível.

Lúcio: Nós discordamos bastante na visão de mundo.

Arís: É verdade.

Tomás: A visão do Arís é mais plausível mas menos empolgante, hehe.

Arís: Haha. Realmente.

Lúcio: Vamos então ver quem está certo? Se é o dualismo de substância ou o hilemorfismo?

Tomas: É o próximo tema mesmo. Se o dualismo de substância está certo, a reencarnação é possível. Se o hilemorfismo está certo, ela não é.

Arís: É isso que vai dar a resposta mesmo.

Lúcio: Realmente. Vamos ver então quem tá certo.

Arís: Na hora. Que tal você começar a argumentar?

Lúcio: Claro, mesmo que o argumento das memórias passadas não possa ser usado aqui vou ver o que fazer. Me diga, quais as diferenças entre um circulo material e a Forma Círculo que está em todos os circulos?

Arís: A forma do círculo é perfeita, exata e, por estar em todos os círculos, universal. Como cada circulo individual é material, é imperfeito, inexato e, bem, individual.

Tomás: Interessante. Tem outro argumento pra alma ai. Nós conhecemos a forma do círculo que é universal, mas tudo que é material é particular, portanto o pensamento precisa ser imaterial para ter acesso ao universal.

Arís: Esse argumento funciona também, talvez até seja melhor que o outro da determinação. O pensamento simplesmente é diferente da matéria.

Lúcio: Realmente. Mas a pergunta relevante é: se o que é material é imperfeito, particular e inexato, como nós conhecemos o que é perfeito, universal e exato?

Tomás: Não pode ser pelos sentidos, pois eles só nos mostram o que é material. Mas nós conhecemos as formas, então deve ter sido de outro jeito.

Lúcio: Acho que a resposta é um tipo de memória.

Tomás: Como assim?

Lúcio: Diria eu que a melhor explicação é que as nossas almas puderam contemplar as Formas antes de se encarnarem. Como as coisas materiais copiam as formas, devem fazer nossas almas lembrarem delas.

Tomás: Como se existissem todas as formas separadas e a alma as tivesse visto antes de viver nos corpos?

 Lúcio: Isso. O mundo material é uma copia das Formas, então a alma meio que lembra delas ao ver objetos que copiam as formas. Como ver vários círculos imperfeitos e materiais através dos sentidos e lembrar da perfeita e imaterial Forma do Circulo ou ver várias arvores imperfeitas e materiais e lembrar da Forma da Arvore.

Arís: Você acha que as formas existem por si só? Só vejo elas existindo na matéria. Diria que as formas não existem separadas, assim como a matéria não existem sem ter alguma forma, mesmo que a de um quark.

Tomás: Então as diferenças só crescem! Um acha que as formas ou essências existem sozinhas e outro que elas existem somente junto com a matéria.

Lúcio: Acho que é um debate pra outro dia. Mas eu diria que as Formas existirem sozinhas e nossas almas as terem visto antes é a única explicação para nosso conhecimento das Formas. Existem as Formas perfeitas, exatas e universais como a Forma do Círculo e os círculos materiais individuais de certa forma participam dela.

Tomás: É estranho pensar nessa noção de participação, pois se um objeto participa na forma ou é composto por ela, como diria o Arís, então ele se transformaria na forma. Mas isso significaria que se meu pensamento fosse material e eu pensasse na forma do círculo ele viraria um círculo, hahaha.

Arís: Hahaha. Esse realmente pode ser um argumento para a imaterialidade da alma. Pois se a matéria recebe uma forma pura ela vira um exemplar dessa forma, o que não acontece com nós.

Lúcio: Hahaha. Vocês são criativos.

Arís: Mas eu diria, Lúcio, que seu argumento falha como o das supostas vidas passadas: tem outras explicações para o conhecimento.

Lúcio: Como a alma pode conhecer as Formas sem ser pelos sentidos nem ser por ter tido contato com elas antes de se encarnar?

Arís: Mesmo que não fosse pelos sentidos, poderia ser o caso que Deus colocou em nós esse conhecimento no nosso nascimento, sendo um tipo de ideia inata cartesiana. Poderia também ser parte de algum tipo de ajuda divina que "ilumina" o intelecto para conhecer a verdade.

Lúcio: Essas ideias assumem que Deus existe, então me parecem mais polêmicas.

Arís: Você é ateu?

Lúcio: Não, só notei isso, hehe. É que alguns como os jainistas são ateus e acreditam em reencarnação, então essas opções não significariam muito para eles.

Arís: Verdade, mas você não pode usar essa resposta.

Lúcio: Sim.

Tomás: Você acredita em um deus?

Lúcio: Acredito. As Formas, apesar de eternas e perfeitas, são abstratas e não-racionais. Como elas são abstratas e portanto casualmente inertes não poderiam dar origem a matéria. Como além disso são não-racionais não poderiam moldar o mundo para que as reflita.

Tomás: É, elas realmente não explicariam a matéria nem como o mundo material é uma copia delas, então me parece que acreditar em Deus me parece inevitável se existem formas separadas


Arís: É verdade. Mas estamos saindo do assunto, sobre se essas outras respostas  explicam o problema do conhecimento melhor do que a reencarnação.

Lúcio: Realmente, hehe.

Tomás: Estava esquecendo mesmo.

Lúcio: Meu problema real com elas é que nessas opções Deus nos dá o conhecimento do universal mas ainda nos deixa ficar presos ao uso dos sentidos e os erros que eles causam. Se fosse para Ele nos ajudar tão diretamente, era melhor nos dar todo o conhecimento de uma vez, como no caso dos anjos católicos.

Tomás: Como se ganhássemos todo o conhecimento de uma vez? Sem precisar de sentidos ou argumentação?

Lúcio: Isso. Se vamos ganhar conhecimento sem ser pelos sentidos, é melhor ganhar tudo de uma vez, já que assim a possibilidade de erro diminuiria muito.

Arís: Mas o defensor dessas ideias não podia responder dizendo que Ele pode ter algum propósito oculto?

Lúcio: Poder poderia, mas não vejo sentido recebermos ideias diretamente ou ajuda para as ter se precisamos tanto dos sentidos para termos acesso prático a elas. Qual a lógica de me dar a possibilidade de conhecer a Forma do Círculo ao ver círculos materiais se vou depender de sentidos que podem falhar tanto? Seria uma ajuda meia-boca e portanto indigna de Deus.

Tomás: Realmente não seria uma ajuda muito útil, pois significaria que quase todos os seres humanos não tem acesso real as ideias que o deus os deu. Se for o caso, seria incoerente com o conceito de ser perfeito.

Lúcio: Exatamente. Essa ajuda mal feita é indigna de Deus, portanto ou Ele nos deu todo o conhecimento ou não nos ajuda diretamente. Se Ele tivesse dado todo o conhecimento, não estaríamos vendo ignorância, então o Criador não nos ajuda de forma tão direta.

Tomás: Se a ajuda divina está cortada, temos duas opções: ou nosso conhecimento das formas ou essências veio de uma visão das formas antes das nossas almas se encarnarem ou então nós não nos encarnamos mas conhecemos as formas através dos sentidos, é isso? São nossas duas opções?

Lúcio: São. Como não temos como ver o perfeito com os sentidos, é claro que a primeira opção tá certa e o empirismo falha.

Arís: É um argumento muito interessante, muito mesmo, mas discordo. Nada está no seu intelecto que não esteve antes nos sentidos.

Tomás: Mas os sentidos revelam para nós o que é material, e nada material é determinado, exato e perfeito. Como pode então nosso conhecimento vir dos sentidos?

Arís: Os sentidos realmente pegam o que é material, mas o material é feito de matéria e forma ou essência. A função do intelecto passivo é receber os dados sensoriais, mas não acaba aqui.

Tomás: Além desse passivo tem um ativo?

Arís: Tem. O intelecto ativo acaba usando as memórias formadas pelos dados sensoriais para  abstrair a forma da matéria e assim a entender sozinha.

Tomás: Eu vejo círculos imperfeitos mas o meu intelecto é capaz de tirar mentalmente a matéria deles e então ver a forma do círculo pura? Até que faz sentido.

Arís: Isso. Através dos dados sensoriais que mostram o imperfeito podemos entender o perfeito "escondido". Não precisa de formas que existem sozinhas nem de nada fora dos sentidos.

Lúcio: Mas como você pode fazer essa abstração sem conhecer a forma antes? Como pode achar sem saber o que procura?

Arís: Vemos vários objetos iguais, como vários círculos, e eventualmente percebemos que tem algo igual neles: a forma. Não precisa de nenhum conhecimento prévio.

Tomás: Olhando as crianças, me parece o jeito natural de conhecer as coisas mesmo.

Arís: Elas são um exemplo bom mesmo. Vimos então que não precisamos de vida antes do corpo para explicar nosso conhecimento, então esse argumento pra reencarnação falha.

Lúcio: Não sei como responder mesmo. Acho que esse argumento falhou.

Arís: Tem algum outro? Acho que esse foi o primeiro que eu vi pra essa ideia e foi muito criativo.

Lúcio: Você acredita em livre arbitrio?

Arís: É claro que sim. Claramente sentimos que temos o livre arbitrío, pois é fácil diferenciar quando você escolheu livremente ou não. Além disso, uma ação só pode ser boa ou má se pudermos escolher, pois o que acontece sem querer não é culpa nossa, logo, como podemos fazer coisas boas ou más somos livres para escolher.

Tomás: Faz sentido. Além disso, se o determinismo é verdade, ninguém crê nele e nem em mais nada por argumentos mas por ser obrigado a isso pela casualidade. Isso significa que o determinista defende que todas as suas crenças são irracionais, inclusive a no determinismo.

Arís: Pois é, nunca levei o determinismo a sério.

Lúcio: Mas você não acredita que a alma e o corpo são um composto? De forma que a alma e ele são uma substância?

Arís: Exatamente. E você que são substâncias diferentes.

Lúcio: Bom, a matéria não é determinista?

Arís: É. Algumas interpretações da física quântica consideram que não, mas isso me parece incapacidade nossa de entender as causas das mudanças mesmo.

Lúcio: Mas se a matéria é determinista e a alma não é algo totalmente separado dela, como a alma é livre? A materia, como na fileira de dominó, vai seguindo o ritmo e a alma vai junto.

Arís: Vamos olhar isso melhor: eu estou com fome e vejo pão e bolachas, o que me faz pensar em qual seria melhor pra comer, eventualmente me levando a uma decisão, certo?

Lúcio: Isso.

Arís: Você vê a alma como separada do corpo, então diria que a alma escolhe e então move os neurônios, que começam uma reação em cadeia que faz seu corpo se mover, certo?

Lúcio: Isso. A alma é a causa eficiente do movimento do corpo, ou seja, quem causa o movimento dele como uma bola de bilhar que bate em outra bola e assim causa o movimento dela.

Arís: No hilemorfismo, a alma é a causa formal dos atos, ou seja ela que garante que essa matéria seja a de um corpo humano e não a de uma pedra, isso é claro, certo?

Lúcio: Sim, então na sua visão a alma não mexe como causa eficiente no movimento da fileira de dominó, significando que o movimento anterior dos neurônios causou o movimento atual deles, ou seja, a decisão é dada pelo movimento anterior deles, portanto, não existe livre arbítrio ai.

Arís: Mas ai você está supondo que os neurônios decidem tudo e a alma é um tipo de coisa diferente que só faz parte da fileira de dominó. Você trata a alma como causa eficiente outra vez, só que uma causa eficiente passiva. Como falei, a alma é a causa formal do ser vivo,  não algo de fora que move os neurônios.

Lúcio: Então como você faz escolhas?

Arís: O meu intelecto é um poder da alma que nesse caso compara as opções e vê a melhor, fazendo que essa seja livremente desejada pela vontade. Você cai no erro dos mecanicistas de achar que somos um monte de partículas se mexendo por forças externas de forma determinista, nesse caso, a alma teria que ser algo de fora pra poder não ser "presa" pelo determismo. Mas não é isso que acontece.

Lúcio: Então você rejeita esse mecanicismo? A alma não age como causa eficiente?

Arís: Isso, a alma é a causa formal e a materia, como os neurônios, é a material. Tudo compõe o todo: eu.  Não é a alma ou cérebro que escolhe, mas esses são partes minhas e eu que escolho.

Tomás: É interessante, embora diferente. Então o homem é como um Estado, que é composto de funcionários, estatutos, normas, leis, material etc mas quem age é o Estado?

Arís: É uma analogia legal. Esse argumento do livre arbítrio depende de uma visão mecanicista onde só existem causas materiais e eficientes, e isso eu não defendo. Esse argumento não ameaça o hilemorfismo pois só incomoda se você não for um hilemorfista, rejeite o mecanicismo incoerente e ele não tem força.

Lúcio: Discordo que seja incoerente. O mecanicismo é devastador para um materialista por acabar com o livre arbitrio, mas o dualismo de substância salva ele disso.

Arís: Na verdade, eu diria que o dualismo de substância não funciona com o mecanicismo. Como essa é a única opção desse ponto de vista, eu diria que você deve rejeitar o dualismo de substância e virar hilemorfista.

Lúcio: Qual o problema dessa filosofia?

Arís: Bom, já vimos que no hilemorfismo a alma é a causa formal do movimento. No dualismo de substância ela é a causa eficiente, certo?

Lúcio: Isso. Qual o problema?

Arís: Bom, para a matéria ser movida, alguma força tem que atuar sobre ela, o que significaria que a alma imaterial teria que produzir uma força material para interagir com o corpo, certo?

Lúcio: Verdade.

Arís: Mas se a alma é uma substância imaterial separada totalmente da matéria, como ela pode produzir alguma força? Me parece que falta alguma coisa entre ela e o corpo.

Lúcio: Não vejo o problema, pois a alma poderia produzir alguma força física sendo imaterial como um isqueiro produz fogo sem ser fogo.

Arís: Mas se a alma produz essa força, não íamos ter como detectar ela? Ia ser uma força nova em cada ação nossa, mudando o comportamento dos neurônios.

Tomás: Fora que isso violaria a Lei da Conservação de Energia.

Lúcio: Poderia ser algum tipo de partícula que não podemos detectar. Fora que a alma poderia redirecionar energia apenas, então não violaria a lei.

Arís: Se ela redirecionar energia, poderia ser detectado. E achar que é por algum tipo de partícula indetectável é bizarro, pois além de ser algo desesperado, daria pra ver os neurônios mudando o comportamento.

Tomas: Verdade. Se a alma é causa eficiente, então ela seria como algo que acerta alguns dominós da fileira e os desvia, e daria pra detectar isso empiricamente no cérebro.

Lúcio: E como o hilemorfismo escapa disso?

Arís: No hilemorfismo, a alma é a causa formal do humano, como o formato da vela é a causa formal dela.

Lúcio: E como isso ajuda?

Arís: Faz algum sentido perguntar como a matéria da vela e o formato dela interagem?

Lúcio: Não.

Arís: A relação da alma e a matéria do corpo humano é a mesma que a das partes da vela, então não existe problema da interação, já que existe só uma substância.

Tomas: Então no dualismo de substância a alma é como uma bola de bilhar imaterial que tenta acertar uma normal enquanto no hilemorfismo ela é a circulariedade da bola?

Arís: Isso. O problema só surge se a alma for a causa eficiente, se for a causa formal, dá certo.

Tomás: Então o dualismo de substâncias é incoerente, pois nele a alma e a matéria são substâncias que não conseguem interagir.

Arís: Isso mesmo. Então o dualismo hilemorfista vence e a reencarnação é impossível.

Lúcio: Bom, é triste ter que dizer isso, pois resisti muito durante a vida, hahaha, mas concordo, o dualismo de substância é incoerente. Só não acho que o hilemorfismo é a única opção.

Tomás: E o que sobrou? A alma é imaterial, então o materialismo é impossível.

Lúcio: Vimos aqui que o dualismo de substância falha porque nele tem duas substâncias que interagem por casualidade eficiente e isso é impossível. A solução do hilemorfismo é que nele só tem uma substância, o homem no caso, e a alma é a causa formal enquanto matéria a causa material, certo?

Tomás: Isso.

Arís: A solução é negar realmente essa separação extrema entre a mente e o corpo.

Lúcio: Exatamente. Nesse caso, como a alma e o corpo não podem ser totalmente separados, colocamos eles como uma coisa só, mas não pode ser como no hilemorfismo, pois ai não tem reencarnação. Também não pode ser como no materialismo, pois a alma é imaterial.

Arís: Então qual a outra opção? Quem enfrentará o hilemorfismo?

Lúcio: Acho então que na verdade tudo é mente, como defendem muitos hindus e vários filósofos como o Plotino. É compatível com algo como a reencarnação.

Arís: Tudo é mente, a metafísica chamada de idealista.  Essa visão realmente é compatível com a reencarnação. É esse o rival do hilemorfismo?

Lúcio: É. O dualismo de substância falha e o materialismo também, então a conclusão que tiro é a de que tudo é mente.

Tomás: Mas como isso é possível? Eu claramente vejo um mundo material. Como minhas mãos não existem?

Lúcio: Eu não nego que o que vemos existe, digamos que o que a palavra "existir" significa é o ponto que deve ser debatido.

Tomás: Mas você fala que tudo que existe é mental, isso significa que não existe mãos fora das nossas mentes.

Lúcio: Sim, só que você está imaginando que existe um mundo fora das mentes e que o que não existe nesse mundo não existe. Isso é o que o idealista nega, então você está argumentando que o idealismo tá errado partindo do ponto que o idealismo tá errado.

Tomás: Então no idealismo o que é real ainda é algo fora da minha mente mas não é material, é mental?

Lúcio: Isso, embora eu ainda não saiba exatamente como funciona. Eu me agarrei ao dualismo de substância por muito tempo, então não estudei tanto o idealismo pra ver qual versão aceitar.

Arís: Bom, parece que o idealismo é um oponente mais digno. Até que esse argumento do livre arbítrio nos fez avançar no debate.

Lúcio: É verdade, mas temos que voltar a conversar sobre a reencarnação, agora que eu vi as fraquezas na minha posição anterior.

Arís: Isso.

Tomás: Então vamos voltar pro assunto: esse argumento da liberdade cai também e revelando consequências fortes. Lúcio, sobrou algum ai?

Lúcio: Claro, será um clichê mas me vejo sem escolha, haha. O que é justiça?

Arís: Que cada um receba aquilo que merece.

Lúcio: Então é injusto algum ruim se dar bem ou alguém bom se dar mal?

Arís: É claro que sim.

Lúcio: Se a reencarnação é real, a alma presa aos prazeres e maldades fica presa numa condição inferior aqui nesse mundo e a livres dessas coisas se libertam certo?

Arís: Isso mesmo.

Lúcio: Mas se não existe reencarnação após a morte a alma fica sem os dados sensoriais como num coma, seja boa ou má, certo?

Arís: É o que eu acredito que aconteça mesmo. Não deixamos de existir, mas do ponto de vista do morto é como não existir.

Lúcio: Então o destino de toda alma é o mesmo?

Arís: É.

Lúcio: Mas em vida não vemos que alguns bons não tem nada e alguns maus tem tudo?

Arís: Vemos isso mesmo.

Lúcio: E o destino dos dois é igual, então isso não é acertado depois dessa vida?

Arís:  Exatamente. Temo que seja injusto, mas não acho que seja o bastante para provar a reencarnação, mas sim que devemos aceitar isso mesmo.

Tomás: Mas temos uma crença firme de que as injustiças serão revertidas. Não digo que isso prova algo, mas essa crença instintiva, como nossa crença de que o mundo não foi criado cinco minutos atrás, é tão básica que só deve ser abandonada com argumentos irrefutáveis,

Arís: Pode ser o caso, mas não acho que só podemos ter justiça com a reencarnação ou que ela é muito justa.

Lúcio: Por que?

Arís: Se lembre que eu acredito que a alma pode sobreviver sem o corpo num estado aleijado, é possível que depois da morte a alma tenha suas deficiências supridas por outro ser, assim ela poderia receber recompensas ou punições depois dessa vida. É possível, é claro.

Tomás: Então como a alma sem o corpo não tem mais dados alguma outra coisa poderia substituir o corpo e dar informação para a alma diretamente?

Arís: Isso. Além disso, talvez essa coisa pudesse refazer os corpos dos mortos de forma que eles voltassem a vida. Só digo que isso tudo é possível na minha visão, então talvez exista justiça após a morte.

Tomás: Parece muito com o que ocorre nas religiões abrâamicas, o julgamento e a ressurreição. Suas visão funciona muito bem com elas, no geral.

Lúcio: É verdade. Mas parece que só Deus tem poder para isso, será que Ele daria esse acerto de contas?

Arís:  Talvez. Por isso digo que é possível.

Lúcio: Mas isso é sem garantia, não devemos confiar na reencarnação que é algo certo?

Arís: Não. A reencarnação na verdade me parece bem injusta, tanto que quase toda fé ou filosofia que acredita nela bota escapar como o objetivo.

Lúcio: Como assim?

Arís: Na reencarnação, eu faço coisas erradas, morro, e uma pessoa diferente de mim paga. Qual a justiça em um inocente sofrer por um crime que ele nem fez ou sequer sabe que aconteceu?

Lúcio: Mas eles são o mesmo sujeito. Muda o corpo e fica a alma, então é uma pessoa só.

Arís: Talvez seja o caso, mas ainda temos alguém sendo punido por coisas que nem sabe que ocorreram. Não acho realmente muito justo.

Lúcio: A alma sabe de certa forma, embora realmente o individuo que ela é não.

Arís: E é ele que sofre...

Tomás: Acho que podemos dizer então que a reencarnação ser a opção mais justa ou não é algo muito controverso para esse argumento provar que reencarnamos.

Arís: Por ai.

Lúcio: Tudo bem. Meus argumentos acabaram então, eu confiava muito no do conhecimento. Arís, você tem algum motivo para considerar que o hilomorfismo é real e que portanto a reencarnação é impossível?

Arís: Tenho. Acho que o idealismo falha em explicar direito como pode existir mais de uma alma.

Lúcio: Como assim? Só poderia existir uma alma?

Arís: A forma ou essência do circulo é uma ou várias?

Lúcio: É uma. Mas ela meio que está em todos os círculos materiais ou, então a tal matéria de certa forma multiplicaria ela. Isso no hilemorfismo.

Arís: Então a forma é uma mas que é multiplicada pela matéria?

Lúcio: Exatamente, é um jeito de dizer.

Arís: Então a forma ou essência do homem também é uma mas é multiplicada pela matéria?

Lúcio: Isso.

Arís: Como hilemorfista, eu defendo que somos feitos de matéria e forma, de forma que a alma é individualizada pela forma no mesmo momento que surge. Minha alma começa a existir com a matéria tal e a sua com outra, tem o composto homem e a alma é parte dele. Você por outro lado acredita que a alma existe sozinha e a matéria é como uma ilusão que só existe nas mentes, certo.

Lúcio: Isso, de certa form. É um jeito de falar que pode confundir, mas já expliquei antes mesmo.

Arís: Mas se a alma não é naturalmente junta com a matéria e a matéria que individualiza, como então as almas são diferentes?

Lúcio:  Você acha que sem a matéria não existe individualidade então deveríamos acreditar numa alma só que parece ser várias?

Arís: Exato. Se a alma não é naturalmente junta com a matéria como no hilemorfismo, então nada divide a alma em "aquela alma" e "essa alma". Sua filosofia lhe obriga a aceitar um tipo de monopsiquismo e isso seria inaceitável.

Tomás: Talvez as almas pudessem nascer em locais diferentes e em tempos diferentes?

Lúcio: Não, isso seria impossível. Para algo estar no local X ou no tempo Y precisa ser parte do espaço-tempo, mas a alma é imaterial, e algo imaterial está além do espaço-tempo, que na verdade parece existir fora das almas mas não existe.

Tomás: Então você diria que naturalmente a alma está fora do espaço-tempo mas a ilusão da matéria faz ela parecer ser afetada por ele?

Lúcio: Isso mesmo. Eu diria que o que diferencia uma alma da outra é pensamento. Cada alma nasce com certa sequência de pensamentos e isso diferencia elas.

Tomás: Mas duas coisas terem atributos não-essenciais diferentes pressupõe que elas são diferentes por características mais profundas.  Então duas almas só poderiam ter pensamentos diferentes se outra coisa separasse elas antes.

Lúcio: Putz, pior que é verdade. Pior que o dualismo de substância também não escaparia disso, porque nele a alma também é naturalmente afastada da matéria.

Tomás: É, parece que só o hilemorfismo pode explicar como eu e você somos diferentes.

Arís: Ou seja, você não tem como escapar do monopsiquismo. Se você vai acreditar em reencarnação, vai ter que defender a velha ideia indiana Tat Tvam Asi. Terá que defender que tudo é um.

Lúcio: Tudo bem, eu imaginava.

Tomás: Você parece sem surpresa. É uma ideia difícil de aceitar essa de um tipo de Atman que todos temos.

Lúcio: Pior que é uma ideia bem comum entre os filósofos indianos e os místicos, é uma ideia bem dharmica compatível com a reencarnação.

Arís: Mas é uma ideia muito diferente do que julgamos ser a realidade.

Lúcio: Os hindus costumam dizer que o homem comum está no que chamam de maya, ou o estado de quem vê uma coisa e pensa que ela é outra. Seria como alguém que olha para uma corda no escuro e pensa que é uma cobra.

Tomás: Então o homem comum pensa que o mundo é material e que ele e seu vizinho são diferentes, mas isso vem de uma interpretação errada da realidade?

Lúcio: É por ai.

Arís: Mas não vejo motivo pra aceitar essa visão radicalmente diferente. Nessa visão, me parece que além do idealismo e o monopsiquismo humano, temos que aceitar um monopsiquismo cósmico.

Lúcio: Acha que no fim essa posição cai num tipo de panteismo, onde só existe uma mente real? Tem algum motivo?

Arís: Sim. No idealismo só existe mente e o conteúdo das mentes, certo? Sendo as mentes a base do resto.

Lúcio: Exatamente. Tudo que não é mente está dentro de uma mente, o mundo, nossos corpos, a matéria, o espaço-tempo etc.

Arís: E quanto as formas? Como, sei lá, ferro só existe na mente a forma do ferro também não precisaria existir em uma mente?

Lúcio: É verdade. Acredito que as formas devem existir na Mente Divina então como a base delas.

Arís: Isso não ia incluir a forma do homem?

Lúcio: Ia.

Arís: Mas nós todos participamos na forma do homem, até vimos que no idealismo ou no dualismo de substância deveríamos ser uma mente só por termos a mesma forma e nada que nos separasse, certo?

Lúcio: É isso mesmo.

Arís: Bom, a Mente Divina não é necessária e tudo mais que existe é contingente?

Lúcio: Você tá falando a verdade, tudo depende da Mente Divina para existir.

Arís: Eu concordo que tudo depende de Deus, mas com significado e consequências diferentes. Isso significa no idealismo que os objetos que nós vemos, as formas etc são parte da Mente Divina, e como mesmo nós somos dependentes Dela...

Tomás: Entendi! No idealismo ser é ser percebido, o que precisa de base tem como base uma mente. Então tudo que é contingente, como o homem, existe pois é percebido, sendo então conteúdo da mente divina e não um ser separado dela.

Arís: Você entendeu! Isso significa que no idealismo só existe uma única mente, a base necessária, e que o mundo sensível, nós e as formas somos só parte dessa mente, nada mais.

Lúcio: Tem razão, então Atman é Brahmã. Tudo que existe é um oceano e o mundo sensível, nossas mentes, qualquer tipo de manifestação espiritual, as formas e tudo mais são como ondas, que parecem diferentes mas não são. Só existe o Absoluto.

Arís: Acho que chegamos ao fim da linha então. Se o hilemorfismo é verdade, então a reencarnação é impossível. Se o idealismo absoluto ou não-dualismo é verdade, então a reencarnação é possível.

Lúcio: É isso mesmo. A verdade sobre a reencarnação é definida pela metafísica correta.

Tomás: E qual está correta?

Arís: Honestamente, vendo a minha contingência, ignorância e fraquezas, não consigo levar a sério a ideia de que faço parte do Absoluto. Como qualquer argumento para isso envolve fenômenos empíricos que podem ser explicados de outras formas, não vejo motivo pra largar minha percepção totalmente. Nem sei se o panteísmo é coerente.

Tomás: É muito difícil de aceitar mesmo.

Lúcio: Mas é uma visão metafísica extremamente comum entre os povos, especialmente entre os mais espiritualizados. Será que o erro não tá em vocês?

Arís: Não vejo motivo pra pensar isso.

Lúcio: Talvez essa questão esteja além da argumentação. É o que dizem os místicos...

Arís: Eles sempre podem estar errados., hehe.

Lúcio: Haha, é verdade.

Tomás: Seja lá quem estiver certo, foi uma discussão muito profunda, especialmente se lembrar que começou com meu gato.

Lúcio: Ele era um bom gato. Gostava de ver ele.

Iluminação

 Não quer luz quem dorme. Iluminado, ruim é o despertar. Grogue, não entende ao escutar, A luz não leva a enxergar, Os olhos ela só faz irri...