domingo, 28 de junho de 2020

Roberto

Roberto: Então, acha que esse ponto de vista deve ser censurado?

Tomé: O nazismo? Sim, não consigo ver um motivo pra um ponto de vista tão destrutivo e perigoso ser tratado como respeitável. Outras ideologias que pregam a violência e o erro como o marxismo também não deviam estar muito melhor.

Roberto: São ideologias abomináveis mesmo, mas você acha realmente que pode usar a força contra quem acredita nessas besteiras?

Tomé: Eu sei que é perigoso deixar o Estado ter esse poder todo, mas se você limitar pra essas coisas com tão grande potencial destrutivo não vejo problema possível.

Roberto: Você acha que pessoas não deviam nem poder defender essas ideias? Entendo prender quem defende seu ponto com ameaças ou armas, mas você acha que uma ideia pode ser censurada?

Tomé: Sim, não consigo ver qualquer motivo para essas opiniões terem espaço. Claro que não dá pra barrar toda ideia errada, seria totalmente imprático e provavelmente provocaria erros maiores como o desrespeito às leis e mártires de grupos extremistas, mas ideias assim não tem defesa.

Roberto: Não tem medo que pensem o mesmo das suas ideias? O Estado tem esse perigo sempre.

Tomé: Alguns já pensam assim, haha. Sempre é uma preocupação, mas você VAI ter que escolher um lado, então que seja o certo.

Roberto: E que tal uma sociedade "neutra"? Onde as pessoas tem a liberdade de buscar a felicidade de qualquer forma que não ataque a busca dos outros? Assim a liberdade de expressão seria absoluta exceto quando impedisse a busca da felicidade, como ameaças.

Tomé: Bom, um Estado assim já de cara discrimina marxistas, nazistas, muçulmanos radicais, anarquistas etc. Não é um problema, mas ainda não é um Estado neutro, que me parece uma contradição.

Roberto: Bom, esse Estado neutro só acolhe os diferentes pontos de vista que são razoáveis, então pontos de vista que atacam a liberdade de outros são negados.

Tomé: Bom, ou essa sua definição se mantem neutra mas não diz nada, ou diz algo e deixa de ser neutra, não vejo outro jeito.

Roberto: Por que? Me parece a única forma ética de organizar a sociedade por respeitar nossa liberdade, o único Estado justo é o que a garante como o bem supremo que é. Se você não gosta de como os outros pensam, se una com seus iguais e viva feliz com eles sem impedir os outros de fazer o que querem.

Tomé: O problema é que esse próprio conceito de justiça é só um conceito dentre outros, você já rejeita inúmeras outras visões. A sua noção de liberdade é outra coisa que também não é neutra.

Roberto: E como a liberdade pode ser de um tipo apenas? Liberdade é liberdade.

Tomé: Bom, um comunista acharia que a liberdade só existe sem propriedade privada, um religioso, que representa o meu lado, acha que liberdade só existe onde a virtude é mais comum, um anarquista acha que a liberdade só existe sem o Estado etc.

Roberto: Bom, tem esse problema, mas acho que essas pessoas poderiam viver em comunidades separadas sobre regras diferentes. Teriam que tornar sua forma de sociedade a única através de persuasão e não coerção.

Tomé: Até isso não seria neutro.  Pense por exemplo na questão do aborto. Se você, como eu, vê como assassinato, não vai achar que permitir isso em alguns lugares é defender a liberdade, mas o contrário. Se você bloqueia o aborto em todo lugar, quem o defende vai achar que está você está atacando a liberdade dos outros. Entende? Não dá pra ser neutro.

Roberto: Acho que estou vendo seu ponto. Você acha então que uma hora ou outra a neutralidade ia acabar?

Tomé: Eu acho que ela nunca nem começaria. Pense por exemplo, já que falamos em aborto, na definição de quem tem ou não direitos. Alguns podem achar que certas pessoas menos inteligentes não tem direitos e que portanto tirar seus escravos desrespeita sua liberdade, outros podem achar que não só pessoas tem direitos mas que outros seres com consciência também tem e que portanto o tratamento atual dos animais é inaceitável e por ai vai. Se o seu critério dizer qualquer coisa desiste de ser neutro e se for neutro não diz nada.

Roberto: Acho que eu concordo até, entendi o que quis dizer.

Tomé: Então sabe que uma "sociedade neutra" é uma falácia, toda sociedade vai ter que escolher seus valores, e que portanto a discriminação é inevitável.

Roberto: Compreendo, mas você não acha que uma sociedade justa é a que tem virtude?

Tomé: Sim. A sociedade tem o objetivo de permitir não só que o homem viva, mas que o homem possa se desenvolver corretamente como a criatura que é, que ele viva bem, e isso só é possível se ele for virtuoso.

Roberto: Então, se uma pessoa faz o certo por coerção, ela não é boa. Segue então que se, por exemplo, alguém não bebe até cair por isso ser ilegal essa pessoa não é virtuosa. O único jeito então da sociedade produzir gente virtuosa é se ela não forçar ninguém a agir corretamente, mas dar bastante liberdade. 

Tomé: Eu concordo que obrigar alguém a fazer o bem não vai tornar a pessoa virtuosa mas talvez o contrário, mas acho que tem mais nessa história. Vocé já viu uma criança selvagem?

Roberto: Já. São crianças que não foram criadas com qualquer tipo de contato humano, então agem como bichos e apresentam inúmeras dificuldades de aprendizado e socialização caso comecem a conviver com gente.

Tomé: Sim, essas crianças não são criadas por pessoas e como resultado não se desenvolvem corretamente. Vemos então que o individuo totalmente atomizado, separado, não é completo. Vemos que o homem é naturalmente social e que precisa dos outros pra poder se desenvolver.

Roberto: É verdade, mas isso não prova de jeito nenhum que não tem natureza humana, já que se o homem não tivesse uma natureza racional ele não nasceria com o potencial que nasce e a sociedade nem teria como existir.

Tomé: É verdade! "Todo potencial está em algo já em ato" ou coisa assim. Claro que a natureza humana existe, mas o que esses casos mostram é que o homem sozinho é necessariamente incompleto, ele só se desenvolve se estiver em grupo. O homem é um animal social e portanto pressupõe a existência da sociedade, que não pode ser formada por indivíduos num "contrato social", já que sem ela nem existem indivíduos.

Roberto: Sim. E você acha que isso é um problema para meu tipo de sociedade?

Tomé: Talvez não pra você, mas pra sugestão que essa sociedade geraria mais virtude.

Roberto: Como?

Tomé: Bom, praticamente todas as capacidades do indivíduo precisam dos outros pra funcionaram corretamente, e isso inclui a capacidade de agir direito.

Roberto: Sim, mas como a livre expressão é o protegida, todo mundo uma hora ou outra ia conhecer a forma certa de agir. A pessoa teria a liberdade de escolher ou não agir direito, então essa sociedade a daria a chance de ser virtuosa.

Tomé: Pense numa criança, nós não educamos ela a impedindo de agir de forma errada quando ela é muito pequena pra entender e então a explicando o motivo quando elas podem entender, as permitindo escolher?

Roberto: É verdade.

Tomé: Então, o desenvolvimento de uma criança depende MUITO da criação dela. Uma criança em um lar desfuncional como um de pais separadas vai ter vários problemas no seu desenvolvimento.

Roberto: Eu entendo, mas abusos físicos e psicológicos ainda seriam proibidos. A questão do divórcio não, mas ainda não acho que seria um problema tão severo.

Tomé: Bom, isso do divórcio é outro assunto, a questão é que a forma que alguém é criado vai alterar bastante os rumos dessa pessoa. Uma pessoa que foi criada a vida inteira criando cachorros não vai achar estranho comer eles e vice versa?

Roberto: Sim, vai. E você acha que algo do tipo aconteceria com a virtude?

Tomé: Isso! A cultura é como uma segunda natureza. Se você é criado num local onde a virtude da prudência, por exemplo, é ridicularizada, dificilmente você vai parar pra cogitar levar a virtude a sério. Você vai ter um enorme incentivo pra ver ela como besteira, e isso tornaria a virtude muito ruim de existir nesse local. Além desse, tem outro problema também.

Roberto: Qual?

Tomé: Existem virtudes que devem ser "exercitadas" e outras que não. Por exemplo, a coragem é adquirida ao enfrentar perigos, de forma que impedir tudo que possa ser perigoso ia destruir a possibilidade de se ter coragem.

Roberto: Sim, é verdade.

Tomé: Agora, a virtude da temperança é mais complicada, pois tentar enfrentar tentações contra essa virtude pra conseguir ela é pedir pra falhar e ser pego num vicio, mesma coisa ao lidar com vicio em jogo. Então uma sociedade onde tentações nessas áreas são faceis de achar teria bem menos gente com essas virtudes.

Roberto: Eu entendo, faz sentido. Mas não é uma péssima ideia forçar os outros a agir direito? Me parece que usar o Estado seria pior.

Tomé: Já tinha concordado com isso, mas eu diria que impedir certas ações erradas, não obrigar certas, seria muito bom sim, mas os detalhes seriam coisa pra acertar dependendo da situação.

 Roberto: Então você não quer usar o Estado contra toda maldade?

Tomé: Não, um Estado paternalista é má ideia mesmo que eu não seja libertário. As leis teriam que ser adaptadas dependendo do contexto e população. O ideal seria direcionar as pessoas mais com costume, a lei não tem como ser muito usada.

Roberto: Faz sentido, então a sociedade livre realmente não produziria tanta virtude assim.

Tomé: Sim, a longo prazo muito estilo de vida mais estranho perderia força, tipo seleção natural, mas ainda acho que uma sociedade onde quase todo estilo de vida é visto como opção seria ruim para produzir bons sujeitos.

Roberto: Eu entendi, mas ainda defendo que essa forma de sociedade é a única justa! Outras formas são coercitivas e atacam nosso direito natural.

Tomé: "nosso"? Um direito só?

Roberto: O único direito é o de auto-propriedade, o resto deriva dele. Por isso acho que mesmo com consequências ruins devemos jamais censurar opiniões, isso envolveria desrespeitar o direito e nunca um direito pode ser violado pelo "bem comum".

Tomé:  Então você é um anarco-capitalista?

Roberto: Minarquista. O Estado só deve cuidar da segurança e das leis.

Tomé: Como você tem essa visão ética e defende um Estado?

Roberto: Acho que no ancapistão uma hora ou outra existiriam monopólios em empresas de segurança que eventualmente seriam quase um Estado e dai, as coisas vão meio, que, indo até... Admito que pouca gente concorda comigo, é meio dificil de explicar.

Tomé: Bom, eu não ligo muito pra esses assuntos internos de libertário, acho que a coisa toda tá errada.

Roberto: Mas como você pode negar o direito natural da auto-propriedade? Me parece obvio, um axioma quase!

Tomé: Bom, eu tenho uma visão diferente dos direitos naturais, acho que as coisas funcionam de outra forma, mesmo que alguma liberdade seja realmente natural.

Roberto: Me parece obvio que as pessoas não podem ser usadas unicamente como meio, mas que cada pessoa é um fim em si mesma, então, por exemplo, o governo não pode obrigar pessoas a pagar por uma ponte, isso seria usar elas como um meio apenas, desrespeitando a autonomia delas.

Tomé:  Sim, dai você tira a auto-propriedade? Da ideia de que as pessoas nunca podem ser usadas só como um meio?

Roberto: Isso. Só o individuo pode escolher o que ele deve fazer, já que tentar o forçar coercitivamente a fazer algo seria o usar unicamente como meio. Nisso se vê que só se deve convencer alguém a fazer algo pela persuasão e não pela violência, respeitando sua racionalidade. 

Tomé: Então só o indivíduo decide o que fazer com seu corpo mesmo.

Roberto: Isso. O individuo é dono absoluto de si mesmo, e portanto pode fazer tudo que não viole a autonomia dos outros. Você tem algum problema com isso?

Tomé: Bom, vai demorar um pouco mas vamos tentar mostrar o erro. Algumas pessoas céticas atacariam a ideia de que certo e errado existe, como você responderia?

Roberto: Responderia dizendo que a ideia de que existe uma forma certa de agir é algo praticamente universal entre as sociedades e que qualquer um que não seja um psicopata sabe que existe certo e errado através da sua própria experiência, é uma intuição que todo mundo tem.

Tomé: Acha que então a ética geralmente é conhecida por uma intuição?

Roberto: Isso, é como a maioria das pessoas ganha quase toda crença. Eu vivo a vida e pela minha experiência passo a acreditar que tem objetos fora da minha mente, que as outras pessoas tem mentes também etc. Creer em certo e errado geralmente começa assim como a maioria das crenças: você não vai acreditar nisso por base de uma argumentação mas por uma intuição e isso é totalmente racional.

Tomé: Bom, todo individuo normal realmente acaba desenvolvendo a noção de que existe certo e errado pela sua experiência e portanto essa ideia se torna a comum entre os grupos, já que todos acabam vendo isso, todo mundo concorda.  Quer dizer que essa característica do ser humano de desenvolver a crença numa ética absoluta não só é a causa de praticamente toda sociedade ter uma ética como é o jeito de sabermos que existe uma ética absoluta?

 Roberto: Exatamente. O ser humano bem desenvolvido acredita no certo e errado objetivos, essa crença necessariamente surge se ele se desenvolver bem, então obviamente uma ética certa existe. Nosso senso ético é como os nossos sentidos, tem seus erros mas você só pode ser maluco se desconfia totalmente.

Tomé: Sim, e você acha que essa intuição nos diz de cara que a auto-propriedade é real?

Roberto: Não. Nós sabemos que existe certo e errado naturalmente, mas esse conhecimento é meio confuso, a maioria das informações são mais gerais, acho que uma reflexão boa na ética que revelaria que a ética correta é a auto-propriedade.

Tomé: Entendi, concordo. Bom, todo mundo concorda que essa intuição praticamente não falha numa pessoa desenvolvida direito, quase todo mundo acredita em certo e errado naturalmente. Mas geralmente as pessoas que discordam da ideia de ética objetiva defendem que isso é uma adaptação. Os genes que fazem alguém ter essa intuição sobreviveram porque geram sociedades mais unidas, permitindo mais reprodução.

Roberto: Bom, então a ideia é que a tendência a acreditar na existência de valores certos é uma adaptação evolutiva igual ter polegares e que então não precisamos de uma ética objetiva pra explicar nossa intuição?

Tomé: Isso. Sabemos que o processo evolutivo só escolhe aquilo que ajuda na reprodução e não o que ajuda a saber a verdade, por isso temos alguns "bugs" e tal. A ideia então é a de que a tendência a acreditar em certo e errado não existe por ser verdadeira mas por ser útil.

Roberto: Entendi, mas isso não prova que não existe certo e errado, já que uma tendência a uma certa intuição pode ter sido escolhida por ser útil e mesmo assim ser verdadeira. Tipo, temos tendência a acreditar que seres como tigres são perigosos, que comer comida estragada é ruim, que existe um mundo além das nossas mentes e muitas outras tendências que existem por serem uteis evolutivamente mas que são verdadeiras.

Tomé: Sim, mas a ideia é a de que bugs existem e que portanto podemos explicar essa tendência em crer em valores certos como sendo um deles.

 Roberto: Sim, esse ponto de vista é auto-contraditório, já que diz ao mesmo tempo que as nossas capacidades cognitivas são razoavelmente confiáveis e que não são.

Tomé: E quanto aos que diriam só que a nossa capacidade cognitiva não é razoavelmente confiável, assim não se contradizendo? Esses geralmente defendem que o fato do processo da evolução ser preocupado com a reprodução e não necessariamente com a verdade tira qualquer confiança na nossa capacidade cognitiva.

Roberto: Bom, essa ideia é também totalmente auto-contraditória. Se uma calculadora fosse totalmente defeituosa e nunca acertasse nada, você confiaria nas respostas dela numas contas muito grandes pra fazer de cabeça?

Tomé: Eu ia é jogar essa porcaria fora, hehe. Se é algo todo defeituoso, como confiar em qualquer resposta?

Roberto: Hahaha, justo. Então, se fulano acredita que a mente humana não é razovelmente capaz de alcançar a verdade mas que ela é toda defeituosa, ele não só não deve acreditar em certo e errado como não deve acreditar em nada, incluindo na evolução ou na ideia de que a mente humana é incapaz de chegar na verdade. Alguém assim não pode confiar nem na sua própria existência, já que desconfia do processo que deu origem a essa opinião.

Tomé: Entendi. Então você está dizendo que fulano não pode desconfiar da mente humana porque qualquer justificativa dele pra isso pressupõe que a mente humana é confiável? Concordo, ceticismo nesse nível se auto-refuta.

Roberto: Exatamente, não dá pra confiar na mente só quando ela diz pra não confiar, é impossível justificar essa ideia. Esse cético mesmo que diz que a mente não é confiável acredita na teoria da evolução, já que usa ela pra desconfiar da mente, algo que ele não pode fazer.

Tomé: Verdade. Dá pra fazer com isso algo tipo um argumento transcendental para a confiança na mente humana.

Roberto: Como assim?

Tomé: Um argumento transcendental é um que pega algo que é verdade da nossa experiência e mostra que outra coisa é verdade também porque sem essa a primeira não seria verdade. Tipo, Y só é verdade se X for verdade, mas Y é verdade, então X também é verdade.

Roberto: Acho que entendi. Como seria esse argumento aplicado aqui?

Tomé: O argumento seria mais ou menos assim: Se a mente humana não é razoavelmente capaz de achar a verdade não podemos confiar em nenhuma ideia que seja, mas podemos confiar em algumas ideias, então a mente humana é razoavelmente capaz de achar a verdade. Não tá muito bem estruturado, mas acho que funciona bem.

Roberto: Sim, po, ficou legal. Então como o nilista moral responderia depois de perceber que não pode duvidar da mente humana e que então não tem como duvidar da nossa intuição que nos diz que existe certo e errado? A mente humana tem falhas sim, mas ela funciona bem.

Tomé: Acho que o cético responderia que ele acredita que apenas a parte nossa que gera essa intuição ética é falha, mas que o resto funciona razoavelmente bem, com alguns errinhos mas chegando na verdade bastante.

Roberto: E que razão teria pra essa distinção? Claro que a nossa mente tem funções diferentes, mas tudo vem da mesma "fabrica", então não dá pra confiar em uma parte da mente e desconfiar de outra. Se os sentidos e a razão são confiáveis, nossa intuição também é.

Tomé: Sim! Concordo que não tem sentido alguém confiar na razão e desconfiar totalmente dos sentidos e do nosso senso moral. Ironicamente é uma posição comum entre racionalistas, que acham que o mundo é muito diferente do que os sentidos e o senso moral mostram.

Roberto: Sempre achei uma distinção esquisita essa, como se a razão não precisasse de correção as vezes! Aqueles exemplos de falhas dos sentidos como o do lápis que é colocado na água e parece torto ou quebrado não dizem nada. Esse mesmo é na verdade um exemplo de alguma ajuda dos sentidos até, pois esse efeito nos diz que tem algo entre você e o lápis alterando a luz que chega aos seus olhos.

Tomé: Verdade isso, o lápis parecer igual seria uma falha também, já que tem a agua no caminho. Os sentidos e a razão são ambos "irmãos" e tem algumas falhas também mas são geralmente confiáveis.

Roberto: Pois é, ou você desconfia de ambos, o que é idiotice, ou confia em ambos na maioria das vezes.

Tomé: E se o cético falasse que mesmo assim devemos rejeitar uma ética objetiva porque diferentes culturas tem diferentes éticas?

Roberto: Diferentes culturas discordam em praticamente tudo, ética, metafísica, leis, roupas etc. Além disso, eu e você olhamos pra um mesmo objeto e vemos tamanhos e formatos diferentes pra uma mesma coisa por estarmos em lugares diferentes. Então, como qualquer um que já teve que responder questão de matemática com amigos, eu diria que diferenças de opinião não comprovam que não tem resposta certa.

Tomé: Sim, mas o cético poderia dizer que ter várias respostas comprova que esse senso ético não é confiável.

Roberto: E eu volto a dizer: os sentidos nos dão respostas diferentes dependendo da nossa posição em relação ao objeto e a razão dá para diferentes pessoas e até pra uma só um momentos diferentes diferentes respostas. Se ele não quer desconfiar desses, não vai desconfiar da sua intuição. Além disso, a maioria das diferenças de ética são causadas por fatores que não tem nada a ver com o senso ético.

Tomé: Como assim?

Roberto: Se você olhar a maioria das culturas, elas tem crenças bem parecidas: seja honesto, obedeça seus pais, ajude seu grupo, não pegue o que é do outro etc. Muitas vezes a diferença está em outras crenças. Tipo, os julgamentos de bruxas que faziam no começo da Era Moderna nos parecem horríveis, mas isso porque sabemos que não existem bruxas, algo que os antigos não sabiam.

Tomé: Entendi. Realmente, se existisse um grupo com poderes mágicos que sequestra e sacrifica crianças e que também usa esses poderes para causar secas e outros desastres é certeza que a maioria da população ia defender a prisão e a pena de morte para essas pessoas. Você acha que esse problema é comum nessas discordâncias?

Roberto: Sim, crenças erradas podem causar muita coisa. Pensa ai num índio dessas tribos que mata os bebês com deficiências. Ele vai ter toda uma crença da base da ética que justifica o ato, vai acreditar que o bebê é amaldiçoado ou algo assim, e assim justifica a crença ética errada através de outras crenças erradas.

Tomé: Verdade, muitas opiniões éticas são causadas pelas crenças sobre a base da ética e crenças sobre distinções éticas que são simplesmente falsas.

Roberto: Isso, nas sociedades tribais tem uma distinção entre o valor de alguém da tribo e alguém de fora, por exemplo. Na nossa sociedade temos uma distinção de valor entre um feto de 2 meses e um bebê de dois anos e a distinção sexual entre mulheres, que devem ter só um homem, e homens, que devem pegar todas. Muitas das diferenças éticas são causadas por crenças e distinções erradas.

Tomé: Sim, além disso, como falamos antes, a cultura pode ser uma influência também, já que por fatores políticos, econômicos, históricos ou religiosos certas opiniões éticas podem ser comuns em certo lugar, influenciando quem é criado nessas áreas.

Roberto: Isso. Quem desconfia do senso ético porque a cultura ajuda a formar ele é como alguém que desconfia da sua própria opinião religiosa ou sua opinião politica ou opinião do formato da Terra porque acreditaria em outra coisa se tivesse nascido em outro lugar. Ninguém deixa de acreditar no que acredita por isso, embora alguns usem contra os outros, hahaha. 

Tomé: Verdade, hehehe. Já que falamos antes de virtude, outra coisa que pode provocar essa diversidade ética é que fazer o mal muitas vezes provoca prazer, então a pessoa começa a fazer um esforço subconsciente para acreditar que o que faz não é mal.

Roberto: Tai uma situação que parece complicada de estar. Mas acho que todo mundo pode cair nisso, tem que prestar atenção.

Tomé: Sim, você não faz ideia de quantos niilistas morais ou pessoas com outras opiniões em pouco tempo de conversa acabam acidentalmente revelando que estão nessa pra manter certo estilo de vida.

Roberto: Imagino, não é tão incomum. Tem inúmeras táticas pra tentar se justificar. A psicologia é complicada. Vemos exemplos disso sendo algo cultural também, como na escravidão.

Tomé: É um bom exemplo mesmo, era defendido por alguns que os escravos não tinham inteligência o bastante para se cuidarem sozinhos mas que deviam ser tratados como crianças. Essa crença não justificava os abusos contra eles, então os abusos eram simplesmente negados, fingiam que não acontecia.

Roberto: Exato. Eventualmente a ideia de direitos naturais era simplesmente negada pra defender que a escravidão era necessária. 

Tomé: Verdade. Sua defesa do realismo ético foi muito boa, concordo com você que o certo e errado existem e que o ser humano realmente consegue perceber isso naturalmente, mesmo que de uma maneira meio confusa que precisa ser desenvolvida. Agora, não acho que a ética certa tem base na auto-propriedade.

Roberto: E você acha isso por quê? A auto-propriedade me parece explicar muito bem a nossa intuição.

Tomé: Além de alguns casos específicos onde essa ética erra feio, tem a metaética,  aquele ramo da filosofia que estuda a base da ética, sabe? Por que a autopropriedade é verdade? Eu diria que a resposta pra essa pergunta derruba a ideia de que podemos fazer tudo com nossos corpos.

Roberto: Olha, eu acho que nunca pensei nisso. Todas as coisas são feitas de matéria, então não devia ter diferença entre quebrar uma pedra e matar um homem, são só compostos de matéria mesmo. Mas essa diferença ética existe, então não sei o que pensar.

Tomé: Bom, eu não acho que seja tudo matéria, mas mesmo assim, acho que tudo ser matéria não significa que não exista diferença entre uma pedra e um homem.

Roberto: Bom, os dois são feitos de átomos ou de partículas, não faz muita diferença, e a matéria só segue leis da física, então não deviam ser o mesmo? Se as partes não tem ética o todo não tem, são só arranjos.

Tomé: Não, eles realmente são feitos da mesma coisa, mas são mais que a soma das partes, sua visão reducionista tá errada. Você está cometendo o mesmo erro dos filósofos que iniciaram a Revolução Cientifica, como Descartes ou Galileu, eles só focaram nos aspectos quantitativos do mundo porque acharam, por motivos filosóficos ou teológicos, que nada qualitativo era real da matéria.

Roberto: Os aspectos qualitativos como cor, natureza, som, função e outros não são criados pela mente humana ao observar o mundo? Acho que a ciência demonstrou que a matéria é só um monte de partículas se mexendo, a visão reducionista.

Tomé: Não, mas é um erro comum. O objetivo do método cientifico é gerar uma descrição matemática precisa da realidade. Assim, o método só analisa, massa, tamanho, força, velocidade, direção do movimento e outras características quantitativas, já que só essas aparecem na descrição matemática.

Roberto: Sim, mas essa descrição matemática é real, já que se não fosse o sucesso da ciência seria um milagre.

Tomé: Ela é real mesmo, mas é incompleta, ela pega do mundo as características quantitativas e ignora as qualitativas. A ciência não vê a cor, o som, ética, função e outras qualidades porque são criações humanas, mas porque o método abstrai só o que precisa e ignora o resto.

Roberto: Entendi então, você está dizendo que o homem e a pedra são ambos feitos de matéria, mas que são ambos mais que isso e portanto tem essa diferença ética entre usar a força contra um e contra outro.

Tomé: Isso! Galileu e outros acertaram na ciência mas erraram em achar que o mundo é descrito perfeitamente pela ciência, que tudo é reduzido à particulas e nada mais. As características qualitativas não são só criação da mente humana mas são parte das coisas mesmo.

Roberto: Sim, e você acha isso porque se a abstração matemática fosse tudo que o mundo fosse nada seria certo e errado?

Tomé: É um dos motivos. Outro motivo é que essa ideia é incoerente. Pense comigo, se a matéria é sem cor, cheiro, intencionalidade e tantas outras coisas, temos duas opções: ou a mente tem essas coisas mas não é feita de matéria, já que a matéria não as tem ou a mente é feita de matéria e portanto também não tem essas caracteristicas, o que transformaria a nossa experiência, a base de todo conhecimento, numa ilusão.

Roberto: É verdade! Tem esse paradoxo! Então quem acredita nessa visão de que a matéria só é quantitativa ou é um dualista ou um eliminativista! Agora faz sentido a maioria dos primeiros cientistas serem dualistas.

Tomé: Você entendeu! Muitos acham que eles acreditavam na alma porque eram religiosos, mas eles só percebiam a implicação dessa visão que tinham da matéria. Tanto é que hoje muitos dualistas influentes são ateus.

Roberto: É isso ai mesmo. Outro problema é que a ideia de auto-propriedade não é compatível com o reducionismo. Se sou dono do meu corpo e tudo que existe são partículas, então não sou dono de nada! Se o reducionismo é verdade, então meu corpo é só algumas particulas que chamamos de corpo. Eu sou dono dessas partículas especificas então?

Tomé: Não, já que elas mudam o tempo todo. então não faz sentido dizer que você é dono das que são ele agora. Fora que se o reducionismo é verdade o que separa seu "corpo" das outras partículas é arbitrário, então você podia dizer que a área do Brasil faz parte do seu corpo, hahahaha.

Roberto: Hahaha, me parece uma boa ideia, haha.

Tomé: Haha.

Roberto: Outro problema é que vemos objetos separados mas essa visão reducionista diz que só existem partículas. Vemos som e cor mas essa visão diz que nada tem som ou cor. Vemos certo e errado mas essa visão diz que nada disso existe. Então essa visão confia na nossa capacidade cognitiva mas não confia.

Tomé: Exatamente! É claro que nossa experiência tem falhas, mas é incoerente dizer que a realidade é tão diferente assim do que vemos. Diria que a visão holista e qualitativa do homem comum vence a visão reducionista quase sempre.

Roberto: Vendo como a visão reducionista não é provada pela ciência e ainda tem essas falhas, eu concordo, o mundo que vemos não é TÃO fora da realidade quanto eu achava antes. Qual é então a base da ética?

Tomé: Bom, sabemos que existem coisas diferentes e que tem características diferentes, acho certa então a visão do senso comum de que as coisas tem naturezas ou essências. Quando um ser se aproxima de sua natureza é um "bom" exemplar de sua natureza e quando falha é um "mal" exemplar. Cada natureza é direcionada para certas características e "bom" é o exemplar que as atinge.

Roberto: Então, por exemplo, um triangulo com linhas retas é melhor que um torto, um gato de quatro patas é melhor que um com três e um homem corajoso é melhor que um covarde?

Tomé: Isso mesmo! Nesses dois primeiros o bem e mal não são éticos, isso seria imbecil, mas no caso do homem seriam sim éticos porque esse sucesso ou falha em cumprir nossa natureza vem das nossas ações escolhidas livremente.

Roberto: Então, por exemplo, a nossa razão é direcionada para a verdade, conseguindo isso ou não, e quem cumpre isso se torna um humano melhor?

Tomé: Isso! Você pode ver que a nossa razão prática tem uma direção também: busca o bem e evita o mal. Até mesmo aqueles que sabem que o que fazem é algo ruim éticamente acham que o que fazem é bom em outro aspecto, como ser divertido ou dar uma vantagem.

Roberto: Mas o que realmente é bom é cumprir nossa natureza, florescer como seres humanos, certo?

Tomé: Isso. Ai está então a razão de algumas coisas serem certas e outras erradas.

Roberto: Entendi, então você acha que descobrir que essa é a fonte da ética nos mostra que a auto-propriedade é errada?

Tomé: Acho, a auto-propriedade tem um conceito de liberdade estranho, ela vem de uma tradição que considera que livre é aquele que pode escolher qualquer coisa sem qualquer direcionamento, é indiferente ao que vai ser escolhido.

Roberto: E você acha que essa visão está errada?

Tomé: Sim, liberdade de verdade é voltada para a excelência, se nada atrapalhar o ser ele segue sua natureza direito. A auto-propriedade diz que o homem é senhor absoluto de si e pode fazer de tudo com seu corpo, sendo que existem coisas completamente erradas.

Roberto: Sim, faz sentido. Acho que você considera que a liberdade é a liberdade para seguir a própria natureza, e que a falha em fazer isso vem de algum problema que seja, certo?

Tomé: Isso, por isso a ideia de uma liberdade absoluta não faz sentido pra mim. Minha liberdade existe porque eu devo fazer certas coisas, então como fazer o que eu não devo é algo protegido pela liberdade? 

Roberto: Mas você não considera que seja bom o Estado censurar tudo que é errado, certo?

Tomé: Claro, tem que ver caso por caso, não dá pra fazer alguns silogismos e resolver toda a politica, hehe.

Roberto: Sim, haha. Entendi, é um ponto de vista inteligente, preciso olhar esses assuntos melhor pra ver se você tá certo ou se a auto-propriedade tem sim uma base na realidade.

Tomé: Claro, a razão é direcionada à verdade, então é bom estudar bem. Vemos isso de novo outro dia.

Roberto: Vai ser interessante.

Iluminação

 Não quer luz quem dorme. Iluminado, ruim é o despertar. Grogue, não entende ao escutar, A luz não leva a enxergar, Os olhos ela só faz irri...